quarta-feira, 2 de julho de 2008

Artigo publicado em: 02/07/2008

Democracia e nação
Araci Asinelli da Luz e Paulo Sertek


“Os governos são como as montanhas: temos de guardar certa distância para vê-las em toda a sua majestade. As proximidades e paixões do momento cegam as vistas desarmadas de lentes de alcance. Só a perspectiva é que nos pode dar a nítida e exata visão da obra de um administrador.”
Este mês completaram-se 50 anos do desaparecimento de Jorge Lacerda, governador de Santa Catarina, em virtude de um acidente de avião em São José dos Pinhais. Também foram companheiros deste infortúnio o ex-presidente da República Nereu Ramos e Leoberto Leal, deputado federal. Com a perspectiva do tempo, vale ressaltar o que já se disse do governador catarinense: seu governo foi uma legítima escola de democracia. Jamais permitiu o menor arranhão às liberdades públicas e à livre manifestação do pensamento, mesmo quando este extravasava os limites do bom senso. As obras de arte genuínas se diferenciam das demais, na medida em que, com o passar do tempo, dão mais de si, não se esgotam, tornam-se perenes. Continuam atraindo as sucessivas gerações porque dão respostas novas. As outras obras, se esgotam, morrem, caem no esquecimento.
O mesmo, penso, se aplica à boa arte de governo. O bom governo de Lacerda continua influenciando a inteligência criadora nos tempos atuais. No entanto, para que haja o seu influxo no momento presente é necessária a difusão da memória histórica. Ao conhecer as experiências de outros, já que não podemos viver várias vidas, ampliam-se os horizontes próprios de sabedoria. Ao ler ou reler os discursos e as narrativas de vida, como as de Lacerda, dá-se o efeito análogo às obras de arte revisitadas, que produzem novas inspirações. O contato com as palavras referendadas por narrativas de vida evocam modelos de comportamento e oferecem conhecimentos novos, capazes de suscitar novas realidades.
No programa de doutorado em educação da UFPR, pesquisaram-se as contribuições de Jorge Lacerda para a educação tendo como objeto de estudo os seus discursos, encontrados no livro póstumo: Democracia e Nação, da editora José Olympio (1960), e as narrativas de vida, que em parte, encontram-se na biografia escrita por Cesar Pasold (1998): Jorge Lacerda – Uma vida muito especial, da editora da OAB catarinense.
Empregaram-se duas técnicas para identificar estas contribuições: a análise de conteúdo e a pesquisa narrativa, servindo-se da narratologia. Identificaram-se os conceitos subjacentes aos discursos e interpretaram-se os significados em função dos contextos narrativos. Verifica-se a atualidade dos ensinamentos através de conceitos e diretrizes replicáveis. Neste sentido, a obra lacerdiana, apresenta características plenamente válidas para a atualidade, no âmbito propriamente educativo, e em outros campos como o da cultura, da arte e da ciência política-administrativa.
Os discursos foram estudados por eixos temáticos, tais como: arte e cultura; educação, valores e interculturalidade; meios de comunicação; missão da universidade; visão de governo, nacionalidade e pátria e unidade econômico-sentimental. As análises permitiram encontrar alguns conceitos norteadores que perpassam as diversas falas e narrativas, podendo comprovar a realidade da analogia com as obras de arte perenes.
Tais conceitos norteadores foram identificados, como a subordinação da técnica aos valores do espírito, a cooperação social e cidadã, a missão da universidade, a visão de futuro e as raízes históricas, a defesa dos valores democráticos, a promoção da inteligência criadora, o diálogo intercultural, o desenvolvimento econômico e as relações entre capital e trabalho.
Os princípios nucleares que tornam perenes seus ensinamentos consistem na valorização do ser humano em sua liberdade e no compromisso com a prática da justiça social.
Adonias Filho, no prefácio do livro Democracia e Nação, refere-se ao ilustre catarinense: “(...) fixava a liberdade que sempre inunda como uma referência quase todos os discursos. Associando a liberdade à vocação criadora, situando-a como indispensável à inteligência, concluía por sua validade na área social como a mais ponderável na mecânica dos governos. Raros os estadistas que, fiéis a uma concepção ideológica, puderam afirmar como Jorge Lacerda: ‘meu governo presa a justiça e defende a liberdade.’ Não será preciso dizer, já agora, que foi um democrata.”
Revisitar os discursos e narrativas de vida de Jorge Lacerda e de outros brasileiros permite resgatar os conhecimentos provenientes da experiência e dar-lhes vida através da inteligência criadora.

Araci Asinelli da Luz é professora do doutorado em Educação da UFPR. (araciasinelli@hotmail.com)